Refugiados
com potencial olímpico sonham fazer e reescrever a história no judô
Yolande Mabika e Popole Misenga fugiram de conflitos na República
Democrática do Congo em 2013 e tentam reconstruir a vida no Brasil. Voltaram a praticar
o esporte no ano passado, no Instituto Reação, e tentam a vaga no primeiro time
de refugiados dos Jogos Olímpicos
Popole Misenga luta para ter a chance de contar aos filhos a história de
um refugiado que chegou aos Jogos Olímpicos. Foto: Miriam
Jeske/Brasil2016.gov.br
Esta é uma história de guerra,
fuga, esporte e esperança, que pode ter um dos principais capítulos em agosto
de 2016. Pela primeira vez, os Jogos
Olímpicos terão a participação de um time de refugiados. Os
nomes dos atletas escolhidos serão divulgados em junho pelo Comitê Olímpico
Internacional (COI). Dois judocas que estão no Rio de Janeiro lutam para integrar
esse grupo.
A possibilidade de fazer parte da
equipe olímpica deu novo sentido à vida de Popole Misenga e Yolande Mabika,
refugiados da República Democrática do Congo. Há um ano, eles treinam no
Instituto Reação, organização não governamental que promove a inclusão social
por meio do esporte.
Na quinta-feira (24.03), os
judocas assinaram, na sede do Comitê Olímpico do Brasil (COB), uma carta de
intenção para participar do Programa Solidariedade Olímpica do COI. Eles vão
passar a receber ajuda de custo até agosto de 2016, para poderem se dedicar
ainda mais aos treinos. O time de refugiados é sinônimo de esperança para quem
praticamente esqueceu o que é viver sem uma enorme carga de sofrimento.
A guerra
Yolande, 28 anos, e Popole, 23,
viveram horrores de perto na República Democrática do Congo, segunda maior
nação africana em extensão territorial. A história recente do país, que
também já foi chamado de Zaire, vem sendo escrita com sangue. As últimas
décadas foram marcadas por conflitos étnicos, genocídios e uma guerra civil
que, na prática, nunca terminou.
Yolande nasceu na capital
Kinshasa, mas foi com a família ainda pequena para Bukavu, no leste, região
mais atingida pelo conflito. Ali também morava Popole. Ambos tiveram que fugir
de Bukavu para a capital devido ao acirramento das disputas locais.
“Aos sete anos, saí (de Bukavu)
por causa da guerra. Fugi pela floresta por oito dias. Em uma província
pequena, subi no barco que me levou até a capital. Lá fiz uma amizade e comecei
a morar com um amigo”, relembrou Popole, que deixou três irmãos para trás sem
nunca mais ter notícias. A mãe já havia sido morta.
A história de Yolande foi
similar. Os dois passaram a se dedicar ao judô em Kinshasa e foram convocados
para o Mundial de 2013, no Rio de Janeiro. A situação desumana na viagem foi o
estopim para o grito de liberdade.
A fuga
Já no Rio, em agosto daquele ano,
a empolgação em disputar o mundial se transformou em desespero. De acordo com
os judocas, o chefe da delegação pegou documentos, dinheiro e até quimonos dos
atletas e desapareceu. A fome e o desrespeito se tornaram insuportáveis.
“Não lutei (no Mundial). Pensei:
já sofri muito, não vou lutar. Saí na rua, fugi do hotel, porque nosso
treinador deixou a gente três dias sem comida. Eu não aguentei, tinha fome. Eu
falei: essa é minha oportunidade para ficar mesmo neste país”, contou Yolande.
Popole
Misenga (E) em luta no Mundial de 2013, no Rio de Janeiro. Foto: IJF
Popole chegou a fazer a primeira
luta, com um quimono emprestado. Perdeu a disputa, mas não queria perder a
dignidade. Seguiu os passos de Yolande. “Lutei lá com fome, com sofrimento.
Tudo ficou no coração. Decidi: vou ficar mesmo aqui. Vou me virar. Alguém vai
me ajudar”, contou.
Ele vagou alguns dias pelas ruas
em busca de alguém que o entendesse, já que falava francês e a comunicação era
difícil. Até que um angolano o encontrou e o levou para a Cáritas, entidade
católica que presta auxílio a refugiados. Com o mesmo amigo, passou a morar em
Brás de Pina, um bairro da zona Norte do Rio onde vivem muitos africanos.
Os conflitos do tráfico nas proximidades
fizeram com que Popole se lembrasse de cenas vividas em sua terra natal. Quase
desistiu, mas os novos amigos o convenceram a ficar. Ele ficou, Yolande também.
Ela conta que a dificuldade é
grande em encontrar trabalho, porque eles não dominam o português. Atualmente,
ela mora de favor com uma amiga angolana e a família da amiga (marido e três
filhos) em Cidade Alta, uma comunidade também na zona Norte. Popole se casou e
mora com a esposa Fabiana e o filho Elias, de um ano, em Brás de Pina. As dificuldades
da nova vida ganharam alento em abril de 2015, quando um convite inesperado
pareceu até brincadeira.
A volta
“Ligaram da Cáritas e disseram
que o Flávio Canto estava me chamando. O campeão do Brasil está me chamando?
Por quê? Pensei: estão me zoando. Já esqueci judô. Sou refugiado, refugiado
pode lutar? A gente encontrou o Flávio. No dia, quando vi o lugar, as crianças
treinando, fiquei muito feliz, porque eu gosto do judô”, relembra Popole, em
referência ao ex-judoca Flávio Canto, medalhista olímpico em Atenas 2004 e
presidente do Instituto Reação.
Eram as portas do esporte se
reabrindo. Popole e Yolande passaram a ser treinados no polo Cidade de Deus do
Instituto Reação, que funciona dentro da faculdade Estácio, em Jacarepágua,
zona Oeste do Rio de Janeiro.
“Eles estavam mal alimentados.
Quando a gente exigia na parte física, por exemplo, eles não aguentavam porque
não tinham nem comido. O Reação atendeu dando quimono, cesta básica. Eles moram
longe, resolvemos ajudar na passagem, e damos lanche. Tivemos que suprir essas
necessidades, para depois exigir”, explicou o sensei Geraldo Bernardes,
coordenador de Alto Rendimento do Reação.
Uma vez preparados para as
atividades, outro grande desafio surgiu: era difícil para Yolande e Popole
entenderem a diferença de treino e competição e, mais do que isso, que a
derrota fazia parte do esporte. Veio à tona a dinâmica macabra a que eram
submetidos na capital congolesa.
“A gente viajava para
competições. Se não pegava medalha, ficava na prisão. Colocavam a gente num
lugar como uma cela pequena por 10 dias, 15 dias, sem comer nada, só café,
pão”, revelou Yolande.
“Lá eles não podiam perder. Isso
me causou impacto social, porque quando chegavam na beira do tatame e era hora
de parar a luta, meu atleta relaxava o corpo, eles jogavam meu atleta no chão e
ele acabava se machucando. Ninguém queria mais treinar com eles. Isso até o dia
em que parei todo mundo, fiz uma reunião para contar a história deles, e o
pessoal ficou mais acessível. E eu também os chamei, Popole e Yolande, e disse
que aqui esse sistema não existia, que tinha que ter tratamento de irmão,
gentileza e a filosofia da própria luta, o fair play”, contou Geraldo.
O deslocamento casa-treino não
dura menos que duas horas para cada um deles. No Reação, Yolande e Popole têm a
oportunidade de treinar com atletas de seleção brasileira de judô e elevar a
qualidade técnica e a preparação física. De acordo com o sensei, treinos com a
seleção brasileira estão previstos para os próximos meses, assim como a
participação no campeonato carioca, para que eles possam ganhar ritmo de
competição.
Geraldo Bernardes comanda
treinamento de Yolande em um dos polos do Instituto Reação, no Rio de Janeiro.
Foto: Miriam Jeske/Brasil2016.gov.br
A
chance
Os treinamentos no Reação se
intensificaram nos últimos meses em virtude da possibilidade de participação no
Rio 2016. “Desde o momento em que se vislumbrou isso, estamos fazendo o
treinamento com eles igual ao que fazemos com os atletas que vão disputar as
Olimpíadas, mas lógico que com situações diferenciadas, porque a escola deles é
a do Congo, não é tão forte quanto a brasileira. Mas eles têm uma vantagem
grande porque chegaram aqui em abril (do ano passado), treinando com atletas de
alto nível e com a nossa equipe altamente capacitada para dar apoio a eles”,
explicou Geraldo.
O COI pediu aos comitês olímpicos
nacionais a indicação de refugiados com potencial de qualificação para os Jogos
Rio 2016. O Comitê Olímpico do Brasil (COB) indicou Popole e Yolanda, o que
aumenta as chances dos congoleses estarem no seleto grupo de cinco a dez
atletas do time olímpico de refugiados que será divulgado em junho.
“É uma história da minha vida.
Vou contar a história, vou falar para o meu filho, vou falar para muitas
pessoas que eu era um refugiado, refugiado no Brasil, e lutei a Olimpíada. Vou
contar essa história mesmo, para fazer um livro e poder falar com outros
refugiados”, disse Popole. Só no Brasil, segundo o Itamaraty e o Ministério da
Justiça, há 8.500 pessoas com o status de refugiados. Outros 25 mil pedidos estão
sendo analisados.
“A felicidade da minha vida é o
judô. Todo atleta, se lutou Mundial ou Olimpíada, fica feliz. Eu ficaria feliz
porque não lutei o Mundial, cheguei para lutar e não aguentei. Agora lutar a
Olimpíada seria muita felicidade, porque tudo vai entrar na minha história de
vida e do esporte judô”, disse Yolanda.
Os dois acreditam que estar na
Olimpíada pode ser também uma forma de dar notícias à família. Se dependesse do
sensei, os dois já estariam garantidos. Para ele, a experiência de treinar
Popole e Yolande já é bastante gratificante. “Eu, como técnico que fui a quatro
olimpíadas, nunca tive a experiência de treinar refugiados. Embora mais velhos,
eles precisam ser transformados de alguma maneira por tudo o que sofreram, e
estamos aqui para fazer mudanças. O judô é a ferramenta”, disse. “Ter uma
equipe de refugiados na Olimpíada do Brasil, no nosso desporto, faz com que
aconteçam transformações. É muito bacana, fora de série, é um prêmio que estou
ganhando por treinar eles”.
Carol
Delmazo, brasil2016.gov.br
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